
Herói, eu?
Carlos Alberto Jales (para meu irmão Marcelino no seu aniversário)
Eu tinha 14 anos. A vida não me era risonha nem franca. Eu tinha necessidades naturais de um quase menino, sem ter as vantagens de um rapaz. Faltava dinheiro, pai afastado para tentar a vida em outra cidade, mãe lutadora, tirando leite das pedras(desculpem a imagem batida) para que não faltasse o mínimo para a família.
Eu tinha 14 anos. Por favor, não me venham dizer que esta é a mais bela idade do ser humano. Existe idade bonita no ser humano? Raul Pompéia já não dizia que a infância é prenuncio de todas as nossas decepções? Manuel Bandeira não diz que no fim estaremos todos dormindo, deitados, dormindo profundamente, mesmo que tenhamos brincado e dançado em torno da fogueira de São João?
Mas eu tinha 14 anos, e minha vida física e mental tinha essa idade. Como poderemos esquecê-la, como podemos fazer de conta que ela nunca existiu? Mais tarde, muitas anos depois, olhei para esta idade e para o ano que marcou indelevelmente minha vida, e recordo um fato tão extraordinário que meus sonhos são quase todos marcados por ele.
O fato ocorreu numa noite na calçada de minha casa na Avenida 10, em Natal. Conversávamos meninos e meninas, jovens, sobre esses temas que embalam nossa vida. O ano era o de 1955 e comentávamos a próxima eleição presidencial ( nesta época os jovens falavam em política), as dificuldades nos estudos, o que faríamos quando chegássemos à idade adulta, todos estes temas, eternos, enquanto o mundo for mundo, comuns enquanto o homem peregrinar por esta terra.Junto a nós, meu irmão mais novo, Marcelino, brincava também com outras crianças.
Já disse que era noite e que nada prenunciava um desastre. Como num passe de mágica, um automóvel (raro naqueles tempos) aproximou-se de onde estávamos, numa razoável velocidade. Neste exato momento, não sei se ofuscado pelos faróis, não sei se assustado com o barulho do motor, Marcelino, com 3 anos, correu para a frente do carro. Durante muito tempo, fiquei convencido de que o heroísmo é uma ficção, uma invenção das grandes narrativas épicas, uma criação de mentes férteis. Eu digo, no entanto que antevendo meu irmão ser atropelado, corri para ele e o abracei, protegendo-o do possível choque do automóvel.
Ainda hoje, lembro a dor que experimentei ao sentir o pára-choque do automóvel bater em meu braço. Imediatamente a rua iluminou-se, todas as pessoas vinham à nossa casa conhecer o herói que arriscara a vida para salvar o irmão pequeno. Eu era parabenizado, endeusado, elogiado. No entanto, eu nada entendia de heroísmo, eu só tinha feito um gesto instintivo de proteger uma criança. Passei a madrugada em claro, rememorando o susto, pensando como tivera tanta coragem, perguntando se tudo não era um sonho.
No quarto ao lado, meu irmão Marcelino dormia, sem saber que havia me transformado num herói de quadrinho. Ao longo da vida, vivi emoções mais fortes, tomei atitudes mais corajosas,muitas vezes perdi e me acovardei. No entanto, nada foi mais iluminado do que aquela noite em 1955, quando a vida abria um parêntesis no meu monótono cotidiano e me transformou num herói sem batalha. E eu só tinha 14 anos, pobres 14 anos, mas era como tivesse vivido uma eternidade.
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